Playlist III Revista Kuruma'tá, 22 de setembro de 202023 de setembro de 2020 Observações musicais de Aderaldo Luciano 11 Não penseis vós que eu sou sombrio, que busco as escuridões, os subterrâneos, as tocas, as grutas e grotas por onde a luz do sol não ousa. Não. Sou um dançarino pelas ruas aziagas, sou um pingo no sobrado avoengo, sou um glúteo espontâneo desligado do samsara, vou descendo a ladeira em desabalada carreira. Lá embaixo estarei entre os sete e estaremos à frente da dança eterna, do ritmo mais elétrico em gritos e aleluias à vida. Vem. 12 Fui com Marlui até o pé de pitanga. Toda a pitangueira tem perfume. A pitanga é uma fruta pequena, com polpa rara e semente profusa. Não como a pitomba, cujo caroço atende por quase toda fruta. O cheiro e o sabor da pitanga é o amor que deixa rastros. As folhas da pitangueira, maceradas, incendeiam as narinas e expandem os pulmões. O amor de pitanga se propaga quanto mais pilado, quanto mais sangrado. Que maneira de amar!!! 13 O cheiro do cajá espalhou-se pela vizinhança da casa. Desde que me entendo por gente, quando pude ver o céu como um ventre, esse cheiro era esperado todos os anos. A casca grossa da cajazeira, as raízes brotando acima do solo revolvendo a terra eram uma parábola sobre o colo de minha mãe, Dona Mocinha. Minha mãe é a terra, minha mãe é a floresta, minha mãe é a cajazeira frondosa, minha mãe é. A trilha sonora de minha mãe é Nazaré. Pereira. 14 Madrugada em Santiago de Cuba, silêncio total. Nus, acendemos um Cohiba numa brasa da fogueira, demos baforadas, observamos a fumaça cortando desenhos contra a lua. Pensei nos mártires, pensei nos que lutam. Ela me perguntou se um dia eu voltaria a ilha. Lhe respondi que o futuro é descontrolado e que o fogo tem prazo de validade. Aproveitamos o fogo. Aproveitamos a brasa. Fumamos até ficarmos cinzas. Na ilha, o sol nasce e se põe sem sair de sobre nós. 15 Essa minha alma que partiu de ontem. Essa minha alma que chegou-me assim. Assim como a herança destinada por quem não conhecemos, um antepassado que nunca falou aos nossos corpos. Fui derramado, ainda sonho, no corpo quase infantil da moça brejeira, doce e sem maldade. Cruzei estradas apenas embrião. Arrastei correntes, ainda microgente. Quando abri os olhos, via Alim Qasimov. Ouvi a melodia. Era um lamento de interrogações. O agradecimento diante da imensidão. A Aderaldo LucianoDiscosDiscotecaMúsicaMúsica BrasileiraPlaylistSem categoria