Entrevista com Jonathan Uliel Saldanha

O músico Jonathan Uliel Saldanha não é uma pessoa fácil de entrevistar, dada a imensidão de projectos que tem. Convenhamos, é impossível estar a par de todos, há sempre um que nos escapa. Portanto, a conversa na Oficina Municipal do Teatro, dois dias antes da apresentação do seu espectáculo com a Vera Mantero no Linha de Fuga, começou com esse facto assumido e acatado. O resto foi o que se segue: um portal aberto para uma espécie de Being Jonathan Uliel Saldanha.

Por Carina Correia

Jonathan Uliel Saldanha – ©Augusto Fernandes

Já sabemos pela Vera Mantero como surgiu o convite para a criação deste espectáculo Esplendor e Dismorfia. O que agora te pergunto é como reagiste ao seu convite para trabalharem juntos.

Reagi muito bem. Eu já conhecia o trabalho da Vera, e depois de a conhecer em França, senti de alguma forma ― não querendo puxar para aqui algum tipo de realismo mágico ― que inevitavelmente fazia sentido trabalharmos em conjunto. E às vezes, quando pensas nelas, as coisas acontecem. Pelo menos, eu sinto isso muitas vezes: que o Universo responde às tuas formulações com uma versão possível dessa tua pergunta. Portanto, pareceu-me que a partir de França seria possível que algo acontecesse, não sabia qual o caminho, mas parecia-me que havia qualquer coisa aí para fazer. Mais do que outra coisa, acho que temos inúmeros pontos em comum na forma como investigamos, e no tempo que dedicamos a essa investigação. Mesmo que às vezes possa parecer que o trabalho — tanto o meu como o da Vera — é altamente prolífico, que as coisas estão sempre a sair com velocidade, sinto na realidade que tudo demora imenso tempo e que cada ideia e cada coisa em que estive envolvido demorou anos a desenvolver-se, só que depois formulou-se em meses. Mas as ideias e algumas das imagens já estavam lá há três ou quatro anos, as coisas sedimentam-se. Portanto, por esse lado da investigação parecia-me inevitável que iríamos partilhar alguma coisa.

Neste espectáculo, fazes a banda sonora e interpretas. Já tinhas feito algum trabalho deste género, assumidamente em palco?

Não, assim tão assumido não. Tive outros momentos e outras coisas, mas não de forma tão clara, com esta sensação de performer. Para mim, foi super-interessante. Lembro-me de a Vera falar e eu ficar a pensar: «E agora como é que eu faço isto?» Ainda para mais, porque não tenho propriamente interesse em performar como músico com o instrumento, aquela dicotomia de alguém que dança e toca um tambor, por exemplo. Sentia que era muito mais interessante para nós fazer uma coisa mais radical e desconfortável. E isso também me fez pensar que não precisaria de estar com um laptop nem com um instrumento, que poderia pensar, que poderíamos os dois pensar. Ou seja, pensarmos os dois em tudo. E isso é muito mais interessante para mim. É mais interessante não ter o papel — aliás, já saltei fora desse comboio há muitos anos — do músico. Durante muitos anos, fiz bandas sonoras para muitas pessoas, mas há uns anos houve um momento em que disse que chegava, que já não fazia sentido para mim, porque começava a fazer as bandas sonoras e rapidamente me convidavam para as equipas de dramaturgia, porque eu estava interessado não apenas em resolver um problema sonoro, mas também em trabalhar nas ideias. E depois também percebi que o meu universo é muito mais de criar a ficção do que propriamente de fazer uma banda sonora. Portanto, acho que este trabalho foi perfeito nessa proposta radical para mim, de reformular a minha forma de estar. E estar em palco é uma coisa completamente distinta para mim.

Tiveste algum tipo de preparação corporal para esta performance em palco?

Não, não tive. E acho que na verdade não fomos por aí. Fomos por sítios bem mais mutantes. Portanto, a minha presença de não bailarino era completamente integrável, pois estes dois monstros não são dois titãs da dança, não é? Não se inscrevem nessa tradição. O movimento e a corporalidade que eles têm não é inscrita numa tradição da dança contemporânea; não tenho de exercer nenhum tipo de referência histórica com o meu corpo.

Sabendo que a música é o teu universo, gostaria de te perguntar se pretendes dizer algo ao mundo através dela. Que te move interiormente?

Achando que tenho sempre muitos indexes no meu acesso ao mundo, tenho muito pouco a dizer ao mundo, mas tenho o meu índex. Tenho uma série de temáticas e de pontos de contacto com a realidade, com as coisas que me interessam, com as coisas que me movem, e como me coloco em relação a elas. Portanto, eu tenho um manual de formas com que interajo com a suposta realidade. Mas não diria que isso tem como fim uma espécie de tese, que alguém possa usar como mapa para compreender o mundo, sendo que o mundo é bem mais interessante enquanto misterioso. Para mim. Ou seja, enquanto impossível de completar, impossível de propor. Tenho uma tendência grande de fugir de ideologia, de propostas claras para resolver o problema de outros. Acho isso complexo. Aliás, parece-me que isso se manifesta complexo agora na dramaturgia geral política do mundo. Há muitas dúvidas em tudo isso para mim, portanto, na realidade, aquilo que me interessa no mundo é a sua complexidade mais vasta e o mistério mais vasto. Tenho muito pouco a oferecer enquanto clarificação. Acho que faço mais parte da secção de humanos que ajudam à mutação e à confusão.

Talvez por isso costumes falar do oculto e da partícula motora do invisível. E isso nota-se no teu trabalho. O que dele conheço faz-me lembrar uma frase que li há pouco tempo num ensaio do H. G. Cancela em que ele diz que a arte, em sentido lato, é «uma experiência que constrói a sua fecundidade na deliberada indefinição da sua natureza».

Olha, nem mais.

Faz sentido então esta minha associação?

Acho que também faz. Não a usaria para fechar a coisa, mas, sim, sem dúvida. Acho que toda essa dimensão de terra ignota e de impossibilidade de tradução é realmente para mim um campo mega fértil e interessante.

Na tua biografia aqui do Linha de Fuga, existe um conceito, no qual trabalhas, que é allopoiesis. Explicas melhor de que se trata?

Há uma série de lógicas, que neste caso vêm da biologia, a lógica do autopoiético, do alopoiético, que foram utilizadas brutalmente por teorias cibernéticas, teorias de sistemas, que deram origem aos computadores, à automatização de fábricas e por aí fora. Alopoiético é… Por exemplo, a construção de um carro é feita por partes e essas partes fazem parte de um todo maior, ou seja, quase que tens elementos absolutamente individuais que não são conscientes do todo de que fazem parte. E isso interessa-me, por exemplo, em música coral, e noutras coisas também, no sentido de criar regras que funcionam numa micro-estrutura ou em micro-relações, mas que associadas a outras regras no curso do tempo geram uma peça mais total, que é a soma destas micro-regras todas, destas experiências todas. É encontrar estes quase graus de camuflagem. Gosto muito de trabalhar em projectos em que, por exemplo, nem toda a gente está a par de tudo e deixar espaços de embate entre a evolução de cada um dos caminhos. Não sei se está claro, mas é por aí.

De entre tantos projectos que tens, existe algum que te dê especial gozo fazer hoje em dia?

Acho que depende mesmo do dia. Acho que estou interessado sempre naquilo que estou a fazer. Ou seja, o momento. O momento em que estou a fazer alguma coisa é o momento mais interessante. Sou muito pouco dado a nostalgia, portanto, desligo-me com alguma facilidade das coisas que fiz. Fico muito mais entusiasmado com aquilo que estou a fazer agora.

Se bem que tens projectos que são contínuos…

Sim, mas quando voltam a aparecer estou outra vez no presente, estou outra vez com eles.

Gostaria de saber um pouco mais acerca da plataforma SOOPA. Que pretendias quando a criaste?

A plataforma começou como um colectivo. Foi criada em 1998, já lá vão 22 anos. Na altura, estava super-interessado em poder colaborar, em fazer algum sincretismo entre músicos, artistas, pessoal mais ligado ao pensamento, e em que pudéssemos encontrar uma espécie de grandes mecanismos criativos onde tudo se misturasse. Mas depois, com o grande insucesso de conseguir fazer isso, reduzi tudo a uma plataforma de ensembles, de música. E só muito mais tarde, diria que só dez anos depois, é que consegui voltar a aceder a coisas que não são apenas música, ou melhor, a música começou a ter também uma dramaturgia visual e tudo mais. Na sua génese, era isso, mas depois foi essencialmente uma plataforma para música, tanto de programação como de organização. E agora, diria que desde 2010, é apenas, e isso sem nenhuma degradação, uma associação. No fundo, é uma produtora: é uma plataforma legal que existe enquanto mecanismo para fazer candidaturas, para albergar uma série de artistas. Ao mesmo tempo, garante um ateliê, um espaço físico que pode ser utilizado para várias coisas. Portanto, há uma espécie de degradação no seu papel artístico, se calhar fruto do neoliberalismo, mas é cada vez mais prática e economicamente viável.

E quanto à tua editora?

Já não tenho. Mas vou ter outra agora: estou a desenhar uma nova editora.

Queres falar disso?

Sim, posso falar. A partir do próximo ano, vamos começar a editar precisamente uma série de peças sonoras corais, estas coisas que andei a fazer durante estes últimos dez anos e que nunca foram editadas. É uma editora que se vai dedicar apenas a fazer sair estas coisas mais complexas.

Por sinal, algumas dessas peças foram apresentadas aqui em Coimbra.

Sim. Em 2017, na bienal Anozero, e outra foi apresentada há dois meses no festival Dar a Ouvir, Paisagens Sonoras da Cidade.

É possível perguntar-te se tens influências musicais?

Acho que é possível. São muitas, é muito difícil. Aquilo que foi mega importante para mim já não é. Talvez possa responder dizendo aquilo que fiz musicalmente enquanto instrumentista. Comecei como percussionista num ensemble de música clássica indiana, tocava tablas, isso quando era puto, com 14 e 15 anos. Depois, comecei a tocar percussão, bateria e estudei trompete, na altura que fazia mais fanfarras e música mais instrumental. Diria que a seguir, quando comecei a fundar ensembles com músicos que tocavam percussão e sopros, deixei eu próprio de tocar e comecei a desenvolver sistemas para esses músicos tocarem, formas diferentes de organizar os instrumentos, pesquisas tonais, etc. Sinto que a minha base foi sempre a percussão e depois os sopros, entretanto cortei completamente com isso e passei a compor e a encontrar estratégias para trabalhar com músicos.

Que música ouves em casa descontraidamente?

Ouço essencialmente dancehall jamaicano, ou tudo o que o Kanye West edita, ou tudo o que a Rihanna edita, por exemplo. Hoje em dia, ouço muita música pop principalmente. Se fosse há dez anos, estaria a combater contra mim próprio, estaria a ouvir coisas mais duras.

Não te desiludiste com o Kanye West?

Eu desiludo-me em geral com o mundo. Mas acho que a desilusão faz parte do fascínio também. Há inúmeras coisas dentro da desilusão que é muito interessante perceber como é que acontecem, porque é que aquilo está a acontecer daquela maneira. Há artistas que protegem menos bem a sua aleatoriedade e claramente o Kanye West é um deles. Mas acho isso mesmo interessante. Hoje em dia, a personagem dele é, diria, fundamental para perceber aquilo que se passa, aliás, mesmo um possível futuro. Quando se fala que há cada vez menos interesse na arte, se calhar era interessante ouvir estes artistas, e perceber como é que eles estão a pensar, onde estão e que tipo de radicalidade está a ser imposta, ou que eles estão a propor. Acho muito importante estarmos atentos a isso. Estou muito mais interessado em ouvir o que o Anselmo Ralph tem a dizer do que alguém da música experimental em Portugal. Muito sinceramente. Há qualquer coisa muito mais pertinente para mim no presente que tem que ver com isso. E que se calhar tem que ver com estes vinte anos em que estive ligado à música experimental. Há coisas altamente circunstanciais que acontecem nesses nichos que acho que podem ser revistas.

Está na altura de falar do teu último disco — Lithium Blast —, que saiu na semana passada [no dia 22 de Outubro] e que foi gravado no Uganda, com um selo da Nyege Nyege Tapes. Como foi essa experiência?

Esse disco foi feito há dois anos e só agora saiu. Entretanto, eu já estive no Uganda outra vez, durante seis meses. Regressei há um mês. Portanto, já gravámos o próximo disco. Este Lithium Blast tem que ver com o início deste projecto, que é um ensemble que fundei lá, em Kampala. Para mim, é sempre difícil quando os discos saem, fico sempre muito desanimado e vazio, não sei. Fico sempre muito desligado do disco. Trabalho sempre até ao dia em que a coisa sai e depois fico noutro sítio, já a pensar no próximo disco. Foi um processo incrível em que aprendi brutalmente, com o ensemble e com o processo de construção do disco, e acho que fundámos uma série de coisas para o próximo disco, que são uma evolução de tudo isto também. Este Lithium Blast é essencialmente um disco de percussão, electrónica e sopro. O disco neste momento está esgotado, o que é fixe para um disco destes. Mas mais do que outra coisa, é uma proposta de trabalhar ritmicamente uma série de lógicas. É um disco que está a ter uma vida muito interessante, já apareceu em muitos sítios. Confesso que és a primeira pessoa em Portugal a perguntar-me sobre ele enquanto entrevista.

Foste tu que propuseste ir para o Uganda gravar?

Eles propuseram-me as pessoas. A Nyege Nyege é uma estrutura fortíssima agora em África, tem um punch incrível. Já há algum tempo que estavam a propor-me ir lá e colaborar com algumas pessoas. Quando fui, propuseram-me especificamente duas pessoas, e depois ainda consegui trabalhar com a fanfarra da prisão de alta segurança de Kampala, o que também foi super-interessante. Portanto, há duas músicas que eles tocam, mas tudo o resto é percussão, uma percussão mutante, com alguns instrumentos tradicionais, electrónica, mas essencialmente manipulação. E uma trompetista, que é uma activista de lá e que tem uma banda de órfãos, ou seja, trabalha com os putos do gueto e põe-nos a tocar — eles dormem na rua e vão ensaiar com ela. Ou seja, são pessoas muito intensas com quem tive uma conexão forte, e fizemos uma investigação densa de que ritmos queríamos experimentar e por onde evoluir com eles. Neste ano, fui outra vez para o Uganda para gravar os Fulu Miziki, que é uma banda congolesa, e ia somente por duas semanas; depois foi o fecho das fronteiras e fiquei seis meses. Portanto, acabei por fazer uma série de coisas e de colaborações com artistas locais. Neste próximo disco, todas as pulsões são electrónicas, ou seja, estamos a evoluir para um sítio completamente mutante.

Sai para o ano?

Sim. Já está quase pronto.

Para finalizar, peço-te uma reflexão acerca do contexto actual, no qual se vive uma crise pandémica e uma crise na cultura. Como vês isto tudo?

Acho que vão existir mudanças fundamentais. Inevitavelmente, há mudanças estruturais que terão de ser operadas. Não sou muito positivista, falando do positivismo enquanto figura histórica, que emergiu do Iluminismo e depois de uma frincha científica. Depois, isso tudo foi por terra com a física quântica: quando a quântica chegou à física, o positivismo foi destruído enquanto estrutura. Esta lógica de que o humano está numa constante superação de si próprio e a chegar a um sítio cada vez mais perfeito parece-me irreal e impossível, porque, lá está, o cosmos é bem mais complexo e é absolutamente indiferente às emoções humanas, ou seja, aquilo que nós achamos que está bem é indiferente. Portanto, não me parece que exista algo melhor que venha de uma provação, a não ser em casos pontuais e talvez algumas experiências pessoais. Acho que há diferenças fundamentais e nessas diferenças vão sempre existir soluções. Se calhar, a única fé que tenho é… deposito fé na capacidade criativa dentro da adversidade. Portanto, diria que há coisas boas que vão chegar, mas parece-me que vão chegar de sítios que não são aqueles de que estamos à espera. A sensação que tenho é de que os sítios que têm estado em diminuição em todas estas eras capitalistas são os que se calhar se vão adaptar melhor e ter mais soluções e mais coisas a dizer no pós-COVID. Se calhar, o grande Sul vai ter coisas a dizer de forma muito intensa. Se calhar, sítios que estão menos cansados, ou menos cansados da sua própria imagem reflectida, vão chegar com uma série de respostas criativas, e com menos medo de mudanças ontológicas e fracturas estruturais.


Este texto integra a coletânea produzida pelo grupo Crítica de Fuga, que acompanha os trabalhos dos artistas e as atividades do Festival Internacional de Artes Performativas – Linha de Fuga.