Não me solta se eu voltar pra casa com as mãos sujas de pólvora Revista Kuruma'tá, 25 de novembro de 202029 de novembro de 2020 Texto de Eduardo Frota Resolvi ser homem-bala quando a tinta da minha caneta secou e percebi que não havia mais como escrever poemas. Eu não soube apontar os meus lápis. Nunca aprendi a usar lapiseira. Eu não consegui destravar as teclas da máquina de escrever. Nem consegui riscar nada além do meu próprio nome na areia da praia – e confesso, ele sempre foi deletado com uma certa elegância pela correnteza. Eu me perdi aos quatro anos de idade em meio à multidão na areia, naquela manhã escaldante de sábado, segurando um picolé de chocolate na mão direita. Enquanto ele derretia e percorria dedos, palma e pulso, doce e gelado, algumas lágrimas, salgadas e mornas, desciam as bochechas feito alpinistas desistindo da montanha. Eu me perdi na praia e nunca me esqueci quando fui encontrado pela minha mãe, pela mão da minha mãe. Na verdade, resolvi ser homem-bala-perdida. Ou homem-perdido-bala. Porque era assim que eu fazia: justamente por não mais conseguir escrever – ainda que não fosse por fadiga -, vagava de bar em bar feito alma-penada-perdida. Ser um homem-bala para errar o tiro, errar o rumo, errar a mira. Vai ser errante na vida – disse o pequeno cramunhão por detrás do meu ombro gauche, esquerdo. E assim todos podem dizer, com suas bocas cheias de doces, cheias de balas coloridas: — Lá vai o homem-bala, perdido. ou —Lá vai o homem-bala-perdida. Este homem-bala que um dia foi poeta, mas que não soube apontar os próprios lápis. Pode? Agora é apontar pra se atirar nessa vida de ai meu deus. O homem-bala que não lembra o próprio nome de tanto que as ondas insistiram em apagá-lo da areia. O homem-bala que bebe, bebe mais, bebe mais três ou quatro vezes mais ou menos uns quinze tragos. Eu, na qualidade de homem-bala, não deveria dizer isto aqui, mas executo divinamente o truque da fuga. Não, saibam que nunca quis roubar o lugar do mágico no circo. Eu fugia tão bem, eu, este grandessíssimo filho de uma puta, que foi moleza adentrar a caravana circense para ser um errante, um homem-bala-errante. Ou homem-bala-perdido? Ou homem-bala-perdida? Preparar, apontar, fogo. A ContoEduardo FrotaLeituraLiteraturaProsa poética