A aldeia, a água serenada, as estrelas e o zum zum zum, com Déa Trancoso Revista Kuruma'tá, 21 de maio de 202121 de maio de 2021 Texto de Aderaldo Luciano 1. Essa alma de Déa Trancoso é de sopro. A aragem de sua voz é o respiro. O tum tum tum do coração avança e retorna, ameaça e se acalma. Mundo difícil esse, mundo esquisito esse, mas o caminho desenhado por Déa não é cataclismático. Há um sistema filosófico iniciado no fundo do rio, subido à terra, penetrado à mata, diluído à alma. O encontro das menores partículas universais com o infinito misterioso e desconhecido. Linda luz como fogo ao vidro. A cobra coral de Seu Tupinambá. ****Seu TupinambáQuando vem na aldeiaEle traz na cintaUma cobra coralOi’é uma cobra coral. **** 2. Fui nascido, criado e iniciado nas artes naturais, no olhar e na entrega à Natureza como fonte de cura e crescimento interior. Durante 21 dias, com intervalo de 3 dias entre cada 7 dias, minha mãe, dona Mocinha, atenta, me oferecia água serenada quando sentia sobre mim alguma energia reversa. Tenho ouvido Déa Trancoso como quem prepara esse ritual. Na canção-testemunho Água Serenada, do poderoso álbum Serendipity, mergulhei em minhas memórias. Talvez dona Mocinha estivesse me preparando para ouvir tão bela vereda músico-natural. Essa minina Déa nos oferece água serenada. Os elementais, com a Luz, entram em nosso templo e morada, corpo e caixa existencial, e nos embalam na rede fluida da Vida. ****Eu não cantoDo jeito que eu já canteiBebi água serenadaE até a voz eu mudeiEu mudeiAté a voz eu mudeiBebi água serenadaE o coração eu laveiEu laveiO coração eu laveiBebi água serenadaCantei em pazSerenei**** 3. Nesses últimos meses, ouvindo Déa Trancoso, sua voz doce, sua canção pétala, sua seara pronta para a colheita, seus leirões bem adubados, entendo, por muito meditar, o quão é grandiosa a existência. Talvez eu fosse me matar um dia, mas ouvi Déa Trancoso. Talvez eu fosse ao pó uma noite, e irei, mas com o som do riacho, com o eco viajando pelas estrelas, pela canção que me atravessou. Aliás só restarão as estrelas. Quando chegar a tarde, o final da tarde, e o caminho estiver entre a penumbra e o breu, eu sei que só restarão as estrelas. Para elas seguirei. Num caminho de flores e pássaros. Como o bem-te-vi. ****Dos desejos e dos beijosDas potências e das carênciasSó restarão as estrelasDas agruras e das paúrasDos sabores e amargoresSó ficarão as estrelasSó as estrelas saberão o caminhoSó as estrelas sobreviverãoSó as estrelas escaparão de fininhoSó as estrelas recomeçarãoDos sofrimentos e dos alentosDos mistérios e das perguntasSó restarão as estrelasDas ciências e ignorânciasDas supercordas e das lembrançasSó ficarão as estrelasSó as estrelas saberão o caminhoSó as estrelas sobreviverãoSó as estrelas escaparão de fininhoSó as estrelas recomeçarãoSó as estrelas são as estrelasSão as estrelas diamantes no céu?São estrelas diamantes cravejados no céu? **** 4. Corri atrás das águas e as águas me carregaram. Areia ficou para trás. Havia um poço no antigo Rio do Canto. O chamávamos Poço da Traíra. E para lá fomos no inverno, quando do rio cheio, quando das águas brabas, quando dos redemoinhos, quando dos desafios de meninos perdidos sob o céu. As águas me abraçaram. O chão de areia fugiu dos meus pés. Hoje, ouvindo o Zum Zum Zum, com Déa Trancoso e Paulo Bellinati, relembrei desse episódio delicado no Poço da Traíra. Água com Areia não se pode misturar, água vai simbora, Areia fica no lugar. O Rio me carregou pro mar e hoje é Odoyá! Ainda há pouco, a voz de Déa fez fluir toda a água que me trouxe. Sou metade água, metade Areia. No meio do mar. ****Água com areiaNão se pode misturarÁgua vai simboraAreia fica no lugarSaravá, Rainha do Mar, Saravá!Zum zum zumLá no meio do marOdoyá!**** A Déa TrancosoDiscosDiscotecaMúsicaMúsica Brasileira