Marina Lutfi e João Gurgel, memória viva de Sérgio Ricardo

Texto de Toinho Castro


Na semana passada fez um ano que perdemos essa força humana, cultural, chamada Sérgio Ricardo. Cantor, compositor, escritor, cineasta, poeta, artista plástico, contador de histórias, testemunha atenta e afiada da vida brasileira ao longo de décadas em que não parou de produzir e desafiar o senso comum, com uma arte multifacetada, complexa e bela.

Já contei aqui na Kuruma’tá algumas histórias da presença de SR na minha vida, como menino brasileiro, morando numa casa em que a música brasileira tocava todos os dias e nos alegrava e nos levava a pensar, na vida, nos rumos do país, a pensar em quem éramos no meio de tudo que vivíamos. SR estava lá com a gente, nesse redemoinho de dias e noites, na vitrola, no rádio, na voz de algum anônimo, violão em punho, num bar de Olinda.

Na semana passada, deu-se um ano de sua morte. Eu quis escrever algo e nada me veio, mas escutei seus discos e tratei de ler seu livro O Elefante Adormecido, recebido há pouco pelo Correio.

Mas algo muito bom se tramava no mundo, e nesse dia, 23 de julho, seus filhos, Marina Lutfi e João Gurgel, lançaram, respectivamente, suas versões de duas grandes obras do pai e mestre. Marina com Barravento e João com Conversação de paz.

Marina, João e Sérgio Ricardo

Com sua voz que me encanta, Marina desfia Barravento com a um rosário, rezado na beira do mar. A canção, que saiu no disco Um Sr. Talento, de 1963, vai chegando aos seus quase 60 anos com arranjos e interpretação que dá vontade de dançar, mas no seu centro Marina imprime ainda o chamamento ritualístico que a composição carrega. E tem ainda a voz de SR, num contracanto que emociona.

João nos surpreende com Conversação de paz, originalmente lançada no disco Arrebentação, de 1971, numa escolha de fina ironia, música oportuna como poucas pra esse Brasil que não conversa mais. Moderníssima, bem humorada e contagiante. Um verdadeiro espaço de invenção, em que João se solta com leveza! O clipe, dirigido por ele, chama a atenção para o quanto a obra de SR é carregada de ferça imagética.

Não sou, de longe, crítico musical. Sou mesmo um bom ouvinte, desses que se delicia com coisas assim. É uma maravilha botar essas duas faixas pra tocar, assim, um depois da outra. Inverter depois a ordem e ouvir de novo e sentir como, as duas, sintetizam tanto da vasta obra de Sérgio Ricardo. O lançamento de ambas no dia de aniversário da morte do pai, é uma homenagem e tanto. Mas, mais que homenagem, vejo a afirmação de dois artistas, da coragem de suas escolhas para suas carreiras, sem medo algum do legado enorme de SR.

Marina e João, irmãos, são memória viva, continuidade e expansão desse legado, mas também originalidade, artistas contando sua própria história. No segundo semestre ambos lançam seus discos… tô aqui ansioso por caminhar nessas duas trilhas que já se abrem belamente. Há algo de promissor demais no ar.