Poemas de Farândola, por Maria Cristina Martins Revista Kuruma'tá, 3 de setembro de 20213 de setembro de 2021 Poemas de Maria Cristina Martins Trazemos hoje, mais uma vez, e mais uma vez com alegria, a poesia de Maria Cristina Martins, de seu novíssimo livro Farândola. Organizando a teimosia não como se arruma o armário, mas como quem expõe a perturbação da ordem, o ruído, o avesso, o fora de lugar, a poeta vai talhando um caminho que vai da casa à rua, do privado ao público, do pessoal ao coletivo, do amor à política. Na dupla chave do familiar-não familiar, Farândola vai criando laços que se entrecruzam em uma dança centenária que conecta a história de uma mulher com “a dança dos maltrapilhos/ a fome e a sede dos saltimbancos/ de tomar as ruas e dançar”. Indo da casa, do familiar, do doméstico, e tomando as ruas, Farândola vai se tecendo como uma aliança, nesse movimento que se desdobra e vai encontrando seus pares, dando as mãos pelo que se reconhecem em suas estranhezas, porque é a condição de estar fora de lugar, fora da ordem, que os une. Ir de mãos dadas (Drummond é um interlocutor importante neste livro) com os que vivem em precarização, os banidos da lei, como os endividados, os camelôs, os mendigos, os sem-teto, estar entre eles, no meio deles, correndo com eles, como lemos em “Estranhos”, é fazer dessa estranheza uma ética e uma política, um modo de estar no mundo, um modo de (não) se sentir em casa. — do prefácio de Danielle Magalhães Compre seu exemplar de Farândola! A casa as oito portas da casa estão trancadasvou contar de novo...são seisas seis portas da casa estão trancadastenho um plano de fugalistas espalhadas pelos cantosa indicar o lugar correto de cada objetocada objeto tem de estarno lugar que lhe é de direitodecido dormir porque:1. sair a essa hora pode ser perigoso2. estou com preguiçatenho um defeito de usoaparentemente sem consertoa casa continua igual, enormeou fui eu que não cresci? A casa II esta casa em que vivo é esquisita à beçapor isso gosteifica no subsoloa sala não tem janelaa área, grande, é exatamente do tamanho da parte de dentrona parte de dentro temsala, cozinha, banheiro e dois quartosa área e a parte de dentro são paralelas entre sia cozinha é minúsculaa parte de que mais gosto é onde estou agoraonde pousei a escrivaninha amarelavejo um matagalonde passarinhos às vezes dão rasanteso sol bate em cheio nas folhasmas aqui dentro fica fresquinhoconfusa não estou por nada A casa III ter uma casater uma casa para voltarter uma casa para voltar e dormirsossegada e displicentetemer apenas monstrosembaixo da camater uma casa para sempreter onde guardar miudezasinúteis e aconchegantespara sempreter uma casa para ficarexceto por um casaco esquecido Vinícius tábomtábomtábomtábomdisse teu coraçãoao que o nosso respondeu“peixinho, dá um chutinhodá um beijinhouma cambalhota” os meninos descem a ruaatrás de bolas e fantasiase você?voará como nosso beija-flor?visitará florestas encantadas?lutará pelo fim dos próprios privilégios?protestará pelos equívocosda humanidade decadente?nos perdoará por tudo?por nada?pedirá perdão?será feliz?terá os olhos doces do pai?os dentes grandes da mãe? quem é você, vinícius?quem seremos nósdepois de você sair do aquário?depois que não for mais peixinhonem minhoca nem aliendepois de nos contestardepois de nos amardepois de nos odiare voltar a nos amar só sabemos isto:porque tua vinda será a mais ternae inquietante aventuraé que agora pedimostempo infinito Tinta a óleo sobre papel meus meninos dormemfrito no óleoda tinta e do hambúrguermal me recordo de quando fritavapor outros meiospiso devagar no quartoo ventilador gira no meu coraçãoo amor total é um espanto sei a origem do meu sustopor entre borboletas azuissapos, besouros verdes e um cachorro hippiee um cachorro preso por amar demaise gangues de pássaros, beija-florese talvez mosquitos da dengue parir é abrir uma fenda no tempoo bebê cresce e eu vou ficandodo tamanho da formigaque ele vai perceberassim que pudermos ir à pracinhaque pudermos deixá-lomexer na terrae comer a terradepois que meu filho nasceutudo o que escrevo é para eleou sobre eleou apesar dele Início teu encantamento tem cheiro de dama da noitegostava que esse enlevo me arrancasse da terracomo quem tira a bola de ferro dos pés de um prisioneirogostava que teu cheiro me acompanhassemais certo do que anjo da guardaporque em ti deposito naturalmenteessa fé inabalável dos que têm fome– Tem mais fé aquele que não tem tu és um texto sem pontuaçãomas com acentos(não gosto da modade internacionalizar nomestirando-lhes os acentos)são como binóculosmelhor: aparelhos de raio xadivinham o que pensoao mesmo tempo em que debochamdos burocratas e doutoresna reunião és tão assustadoranão tipo a menina que vomita verdetipo montanha-russade que a gente toda gosta de ter medomenos tuque preferes exorcismo gosto de tanta coisa em tique nem sei por onde terminar Meio gostam quando se veemdepois de tantos dias impedidos pelo trabalhogostam de tudo que têm feitoaté do que não gostamescrevem:“minha pele pede a suae sua boca sobre elaminha pele fala comigoquando você não estáminha pele está ficando loucamarca atos contra sua ausênciafaz greve de transpiração”um poema às vezes é um retratouma lembrança às vezes é um gozomas nadanada mesmose compara ao dia em que se conhecerampenso até que não deveriam seguiro curso natural dos encontrosporque nenhum momentoserá melhor do que o dia em que se conheceram Fim na sua versão de romeu e julietasó a julieta morriacatei meus cacos e dissecomigo não, violãoaqui você não se cria Farândola Se não puder dançar, não é minha revoluçãoEmma Goldman será difícil acompanhara dança dos maltrapilhosa fome e a sede dos saltimbancosde tomar as ruas e dançar tentaremos nos juntarna mais sincera intençãomas pode ser que nos dispensem(exceto quem esteve por pertoa ponto de ser reconhecido)outra parte condenarámesmo sendo a favorobservando que falta direçãoa sua direção, claro em algum momento todos pensamque é possível fugiraté que batem à nossa portapensam que seguir as regrasnos mantém livresnos mantém vivosaté que batem à nossa portade um jeito ou de outrosempre batem à nossa porta mas somente em alguns lugaresentram sem algemas(quando aquele meninoreivindicou o uso de algemasdemorei a entender:a polícia não precisa delasquando entra para matar)arrombaram sua portaviolaram sua casaseu corpoquem assistia também sangroutodos sangram juntosmas somente a alguns lugaresnão se pode voltar depois aquele menino pergunta:o que você quer?ser sempre o que apanhao mártir, o suicida?quero ser pedranoite e poemaesgarçar a fenda da reparaçãoromper em florcobrir o asfalto com nossas floresaté que nossas floresnão sejam mais arrancadas será difícil acompanhara dança dos maltrapilhossaltimbancosos invisíveisos inaudíveisa patuleiaa súciaaqueles que têm fome e sedede tomar as ruas e dançarsua própria coreografia A casa IV procura-se um fiadorcom nome limpo na praçasalário bomcomprovadoimóvel quitadoaverbadono mesmo municípiode quem precisa de um tetoe não pode comprar ou terá de raspar as economiasde anos de trabalhoe agradecer o privilégiode ser um assalariado o importante é proteger o proprietáriocaso não arque com o combinadoe seja despejado a propriedade é sagradae sempre haverá uma marquise A casa V o mendigo encontra a marquisee faz dela uma casinhatem um colchãobanquinhocobertor para o cachorropapelão que imita portaum retratoalguns livros todo mundo precisa de um cantinhode mimos e lembrançasé possível ver uma casinhasob um teto de estrelasem qualquer marquise ocupada Foto de fim de tarde perdi os pássaros em seu voo das cincoe a cabeça branca da eleanor rigbyacompanhando a volta do trabalhode quem não pode fazer home officede quem não teme o vírus só alcancei o que é mais estáticoou aparentemente lento:as nuvens, o sol os filtros escondem o que se adivinhatudo o que me derruba é o queme põe em pé novamentea confiança é um ninhodesfeito, refeitoparei de contar quando o tempodesafiou a paciênciaafinada com a precisão de um amador Inacessível não escrevoo que mais me corróio que mais me entornae me põe do avessoisso não consigonem sabersó sei quedo fio invisível que carregamose nos liga a tudo o que é vivoesse fio que pode ser almaou espírito ou coração e cérebroe nos liga também ao que é mortoporque é pelos mortos que seguimossem sabere por isso sem saber se é útildesse fio invisível teço as palavraspara materializarespalhar as palavras pela casanão me basta sentir o peitonem fazer sexonem comprar uma bolsanem dar um mergulhonem rezarnem dormir Arte de Maria Cristina Martins Leia também, de Maria Cristina Martins e Tássia Veríssimo, o livro Entre Máscaras!Compre seu exemplar na Blooks Livraria Que um livro assim surja no meio de uma pandemia, e por causa dela, é auspicioso, e nos traz a oportunidade, por meio dele, iluminar nosso cotidiano mergulhado numa quarentena que desabou sobre nós. — Toinho Castro A Leia MulheresPoesiaPoesia brasileiraRio de Janeiro