Jandaíra quer ficar – Parte 2

Uma fábula estranha de Toinho Castro —


Leia Jandaíra quer ficar – Parte 1


Sentada na praia, Jandaíra olhava o mar. A maré alta cobria os arrecifes e o Atlântico se descortinava para além do horizonte. Apesar do ruído das ondas, o mar parecia-lhe silencioso, contido. Atrás dela, a Avenida Boa Viagem jazia carente do movimento dos automóveis. Agora, somente um outro veículo a atravessava rumo ao Pìna, ao Centro ou Olinda. Na maior parte das vezes, veículos autônomos de serviço, aspirando inutilmente a poeira das pistas e dos tempos, recolhendo o lixo cada vez menos abundante, entregando pacotes a quem ainda encomendava pacotes.

Jandaíra abriu o app de gravação de voz do seu celular, sentindo-se uma personagem daquele filme, Omega man – A última esperança da terra, e começou a gravar. Eis o que ela gravou:

Li, dia desses, que construíram complexos massivos de servidores no fundo do mar. No leito do mar, assim dizia a revista. E aí fico ouvindo as pessoas falando na Nuvem; que vão pra Nuvem, em subir pra Nuvem… Não sei se é uma ironia ou uma doçura, que a Nuvem fique no fundo, no leito do mar. Então imagino essas instalações como grandes navios fantasmas, carregando aquelas almas digitais, que optaram, por vontade própria, movidas por alguma vaidade, abandonar o mundo, por outro outro mundo. Uma Valhala de bits e algoritmos e silício. Nem sei se ainda usam silício, mas que importa?

São sítios secretos, com autonomia, dizem, de milhares de anos, murmurando nas águas geladas das profundezas, como certos monstros marinhos. Os peixes os evitam, repelidos pelo murmúrio contínuo, que faz a água ao redor, sob o peso do oceano acima, vibrar como uma ameaça permanente. Os peixes contornam essas estruturas submersas, que mais parecem abandonadas, à própria sorte, confiando nos tais milhares de anos de autonomia. Essas almas confinadas, que não sabem que a Nuvem, fica no fundo do mar. Milhares, milhões, de almas a vagar. Entre elas, a minha mãe.

Já em casa, Jandaíra abriu o notebook, apagou a luz da sala, deixando apenas uma pequena luminária acesa. O aroma leve do incenso enchia ar, bem como a fina fumaça, se desenvolvendo em pequenas volutas, ao sabor do pra lá e pra cá de Jandaíra pela sala. Sentou-se em frente ao notebook, respirou fundo, e disse pra si mesma: Vai começar a sessão espírita…

— Não vai ligar a câmera?
— Hum… hoje não.
— Mas bem que eu queria te ver. Tô com saudade do seu rosto.
— Como você “vê”?
— Como assim?
— Assim… ver algo é um evento… como dizer? Físico? A luz atravessa a pupila, alcança a retina e é transformada em impulsos elétricos, sei lá, e essa informação é levada ao cérebro, que, por assim dizer, forma uma imagem. Você precisa ter olhos para ver.
— Sério isso?! É isso que você quer saber?! Sei lá como eu vejo! Nem antes eu sabia direito. Pare alguém na rua e pergunte como ela enxerga. Duvido que saiba responder. Eu não sei… só sei que te vejo.
— Você lembra? Ou tá esquecendo meu rosto? Ou tá com medo de esquecer?
— Eu não te esqueço. Jamais. E estou te esperando aqui. Você sabe disso. Eu, seus amigos…
— Alguns.
— Sim, alguns. Nunca são todos, em lugar nenhum que você estiver, Janda.
— Isso aí não é um lugar.
— Ah, chega, né?! Liga a câmera, Jandaíra! Pelo amor de Deus, né?!
— Deus não existe.

Não foi a melhor conversa que elas tiveram. Jandaíra acabou se sentindo culpada, mas o lance de saber como ela enxergava, era uma dúvida legítima, talvez colocada num momento inoportuno. Elas tinham 15 minutos por semana para conversar, para ver uma a outra, seja lá como isso aconteça, e Jandaíra estragou se recusando a ligar a câmera, teimando, dizendo que Deus não existe. E daí?, pensou Jandaíra. Grande merda Deus existir, não existir. Para se redimir, talvez consigo mesmo, Jandaíra fez pra sua mãe um upload do som das ondas que ela havia gravado na praia. Lembrou que as duas costumavam ir bem cedinho e se demorar, assistindo a maré mudar, até o sol encontrar o limiar dos edifícios e a faixa de areia começar a se encher de suas sombras. Porra, ela amava a mãe e sentia uma falta enorme dela.

— Eu reivindiquei seu corpo…
— Oi? Não sei se entendi…
— Seu corpo, eu reivindiquei ele, 
— Como assim, Jandaíra?
— Ema té três dias após a transferência, um familiar pode solicitar o corpo. Bem… eu solicitei o seu.
— Mas que diabos! Pra quê isso, Jandaíra?! Pra quê isso?!
— Para cremar…
— Jandaíra?! Cremar?!
— Sim. Cremei seu corpo, numa pequena cerimônia. Eu e o Joelson somente.
— Eu não morri, Janda!
— Não? Não era o que seu corpo me dizia.

Como você pode ver, foram quinze minutos de papo bem esquisitos.

CONTINUA…


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