A zeladora da loucura Revista Kuruma'tá, 24 de fevereiro de 202021 de novembro de 2022 Texto de Toinho Castro Sábado de Carnaval com o Galo da Madrugada despertando o Recife e eu aqui, num Rio de Janeiro não menos montado na folia, pensando em Nico. Pensando naquela dama de voz profunda, nascida Christa Päffgen, em Colônia, na Alemanha, no distante ano de 1938, às margens da Segunda Grande Guerra, que eclodiria no ano seguinte. Girei a roleta do Spotify em busca de Chelsea Girl, seu primeiro álbum solo de 1967, após ficar ao léu da nau confusa e sem rumo que estava por se tornar o Velvet Underground. Foi no disco “da banana”, o primeiro do Velvet, que escutei a voz de Nico pela primeira vez. Sem todas as informações que passei a ter ao longo dos anos, ainda mais depois do advento da internet, escutar aquela voz era como encarar um mistério, um fantasma; algo como se vislumbrasse, de súbito outro mundo. All tomorrow’s parties era essa brecha que se abriu no meu quarto, na Imbiribeira, Sobrenatural era a palavra, como se de repente uma presença se impusesse entre aquelas quatro paredes. Ali abracei algo que passou a fazer parte da minha vida até hoje. A sonoridade da voz de Nico; uma voz que também se impusera, de alguma maneira, sobre o disco do Velvet, como uma assombração. Lembro quando compramos, eu e meu amigo Winston, nas nossas primeiras aventuras comerciais na web, o CD do Chelsea Girl. Talvez seja essa uma falsa lembrança… mas Nico, Winston, Chelsea Girl, Lou reed, Velvet Underground, são temas muito entrelaçados na minha memória, como se um fizesse parte dos outros. Ouvir o CD era abrir outra vez aquela porta… Nico não gostara do disco, das flautas, do clima pastoril, meio folk, meio pop, recheado de composições de Lou Reed, John Cale, Dylan e Jackson Browne. Na época a gente não pensava muito nisso, acho. Era um disco de Nico e amávamos. Era estranho aquela mesma voz que dilacerou All tomorrow’s parties entoando os versos de The Fairest of the seasons. Mas era o que tínhamos. Até que nos chegou às mãos The marble index, aquele estranho monólito negro, denso, complexo. Com todas as músicas escritas por Nico e produção de John Cale, The marble index é um disco triste, carregado de angústia e originalidade. Quando o chamo de monólito me vem à mente o filme de Satanley Kubrick, 2001 – Uma odisseia no espaço, lançado no meio ano de 1968. Os primevos de Kubrick bem poderiam estar diante do disco de Nico, pelo menos era assim que eu me sentia. Sempre que pensávamos em 1968 vinha-nos ao juízo o Jefferson Airplane, a contracultura, as guitarra de Hendrix, o LSD. E ali não poderia haver nada mais diferente. Acho que o escutamos nos anos 1990 e ainda era um disco desafiador, difícil, que nos impelia a olhar a música pop por um ângulo completamente novo. Ainda hoje posso escutá-lo como algo novo, algo que me surpreende e encanta. E assusta também. Música que Nico escreveu para seu filho, Ari. Nico morreu em Ibiza, onde passava férias com seu filho Ari, no ano de 1988, antes de completar 50 anos. Teve um ataque cardíaco enquanto andava de bicicleta e bateu com a cabeça ao cair. Um fim inesperado para a musa soturna Levou uma vida atormentada, mergulhada no vício em heroína, e nos legou uma pequena discografia de seis discos. Escutá-los é um salto na escuridão, nos desvãos da música pop, é andar perdido como ela andou e não saber voltar. Mesmo Chelsea Girl, com tudo que nele a ela foi negado, carrega algo que é impossível domar. Nem mesmo as flautas, que ela tanto odiava, foram capazes de esconder a solidão que perpassa a voz de Nico. Esse texto escrito em pleno carnaval carioca, é porque, hoje, Nico não sai da minha cabeça. Talvez porque a mensagem massiva da folia me obrigasse a um contraponto, uma voz dissonante. Encontrei nela o desconforto necessário do diferente e do novo, do inapreensível. Quem sabe desperte em você a curiosidade de ouvir seus discos, a despeito do que te empurram cotidianamente os algoritmos. Vamos enganá-los com a música de Nico. Obrigado, Christa Päffgen. Janitor of lunacyParalyze my infancyPetrify the empty cradleBring hope to them and me Janitor of tyrannyTestify my vanityMortalize my memoryDeceive the Devil’s deed Tolerate my jealousyRecognize the desperate need Janitor of lunacyIdentify my destinyRevive the living dreamForgive their begging scream Seal the giving of their seedDisease the breathing grief Para Winston Araújo A DiscosDiscotecaNicoToinho Castro