Texto de Toinho Castro
Para Raquel Temporal
— Como assim isso aqui não é o Rio de Janeiro?
— É isso que você ouviu… isso não é o Rio de Janeiro.
— Mas você se perdeu?! Você disse que conhecia o caminho…
— Eu conheço! Mas não sei… Não tô reconhecendo nada por aqui!
— Ué, então vamos voltar pra rodoviária! Dá meia volta!
— É o que eu tenho tentado fazer, voltar pra a rodoviária. Sem sucesso…
— Para o carro! Para o carro…
— Não, não vou parar o carro aqui, a gente nem sabe onde tá! Pode ser perigoso, sei lá…
— Fica calmo… vamos refazer o caminho. Nem que seja de ré!
— Poxa, tô tentando… mas é como se o caminho tivesse se desmanchando atrás de nós.
— Gente, não é possível. Que conversa doida é essa? Qual é o nome dessa rua? Você viu o nome das ruas?
— Vi mas não conheço nenhuma delas… e não consigo reencontrá-las quando tento voltar. Parece que a gente tá andando em círculos sem passar pelos mesmo lugares… você entende isso?!
— Não, não entendo. Isso não é possível… vamos acalmar. Qual foi a última rua que você reconheceu?
— Cara, não consigo lembrar… eu vinha seguindo normalmente e quando dei por mim já era outro lugar.
Começa a chover forte.
— Que merda é essa?! O Triângulo das Bermudas?!
— Não sei… mas não vejo nada aqui que eu reconheça!
— Há horas não vejo ninguém nas ruas… nem carros. Onde foi que a gente se meteu?!
— Pô, acredite…eu sabia o que estava fazendo, pra onde tava indo. O que tá acontecendo aqui não é normal… chame de Triângulo das Bermudas, do que quiser.
— Que saco! Não tá vendo que tô assustada?! Eu vim passar o feriado no Rio, não no inferno!
— Não, a gente não tá no inferno, não! Mas algo aconteceu…
— E a gasolina… e quando acabar a gasolina?! Não vi sequer um posto!
— A gasolina já acabou, meu amor. Não sei o que nos move…
A noite avança.
— Você precisa dirigir um pouco agora. Tõ cansado.
— Encosta o carro ali…
— Não, não vamos parar o carro. Não sei o que pode acontecer se a gente parar. A gente troca de lugar com o carro andando.
— Dorme um pouco… daqui a pouco eu te acordo e a gente troca de novo.
— Quando um de nós acordar terá passado… esse pesadelo. Em algum lugar um de nós dois tá sonhando tudo isso. Um de nós precisa libertar a gente.
— Não é possível que ninguém viva aqui… Não é possível….
— Em algum momento, em alguma esquina que dobramos, tudo mudou e agora qualquer coisa é possível…
— Pelo menos tem uns CDs aqui…
— É verdade. Vamos ver! Kraftwerk… não, esquisito demais! Nick Drake, Nick Cave…
— Acho que tem um do Kinks, não?! Queria ouvir Waterloo Sunset.
— Tá aqui. Esse disco é bonito demais! E essa chuva que não passa… quando essa noite vai acabar?
— Bota Waterloo Sunset na vitrola, que eu vou dormir e não sei se vou acordar. Que seja ouvindo Kinks.
— E sorri. — Mas tem uma linda do Kinks e é essa que a gente vai ouvir, porque não vamos mais dirigir esse carro. Se ele anda sem gasolina pode andar sem motorista e cumprir sua sina.
Ele sorri pra ela no meio da noite chuvosa, dentro daquele carro perdido num mundo estranho… a música começa a toca e ele reconhece enquanto adormecem.
— The way love used to be…
— Não sei se é o Kinks mas de repente tenho a sensação de que o que tá acontecendo, se é que alguma coisa está acontecendo, não é ruim.
— Acha que chegaremos a algum lugar?
— Nenhum lugar que nos surpreenda.
Começa a tocar When a solution comes e a chuva já não é tão forte. O céu acinzentado entre nuvens denuncia que está amanhecendo.
— O dia está nascendo… pelo menos o ciclo dos dias e noites funciona aqui. Já é algo…
— Eu e você aqui, seja lá onde for, já é algo. E o Kinks… nossa. Que sorte a gente ter o Kinks.
— Gente, aquilo é uma mangueira?! Ali, antes da esquina, na frente da casa azul… tá carregada de manga. Vamos ver se a gente para esse carro e rouba algumas. Tô com fome…
— Apoiada! Quem sabe atiram na gente!!!! Hahaha!
— Nossas aventuras na dimensão paralela apenas começaram!!!
Ele pulou do carro em movimento, pegou três ou quatro mangas e teve que correr muito para alcançá-lo novamente. As balas zuniam sobre as suas cabeças, sobre a capota do carro. Finalmente estavam felizes.