Texto de Toinho Castro
Compro ferro velho, compro chumbo,
cobre, geladeira velho,
ar-condicionado velho,
fogões velho.
compro panelas velho,
portões velho…
Essa é a litania que escutamos todas as manhãs enquanto o carro do ferro-velho percorre nossas ruas com suas asas sombrias e sua voz metálica, arrastando com ele restos vazios de geladeiras e peças de metal cuja origem já não conseguimos identificar. Pedaços de mecanismos obscuros, restos de ar-condicionados que gelaram quartos onde coisas estranhas, talvez sinistras, aconteceram. Redemoinhos de parafusos e fios já sem uso, perdidos da sua utilidade original. Pouco sabemos do passado dessas coisas, dessa maquinaria abandonada.
Somente o homem do ferro-velho, o dono do carro do ferro-velho, junto com seus asseclas, poderá nos falar do futuro dessas traquitanas. Para saber do que essas estranhas pessoas seriam capazes, para entender o que elas estariam tramando por trás dessa óbvia fachada de coletores de velharias ferruginosas, eu e o Zé José seguimos a kombi surrada no seu trajeto monótono pelo bairro e através de outros bairros, num percurso cada vez mais circular e labiríntico… achávamos mesmo que não conseguiríamos voltar.
Pobre de quem, gente boa, acha que está sendo discreto. Num dos becos escuros do caminho fomos abordados, amarrados, vendados e acomodados na caçamba da kombi. Rolamos naquela situação pela periferia da cidade, que poderia ser qualquer cidade em qualquer das dimensões que supomos existir. Havia momentos em que parecia que circulávamos sem gravidade, envolvidos nas nebulosas e árvores dos subúrbios. Não sei nem quando nem onde viemos a aportar depois de largar a alma pelo caminho.
Ao nosso redor jaziam montanhas de lataria que dariam tétano em escala planetária. Muitos homens trabalhavam naquilo, separando, juntando, operando máquinas enormes e complexas. Diante do cenário evitamos falar e trocamos alguns olhares furtivos que não passaram desapercebidos.
— Testemunhas oculares… — falou o motorista da kombi, agora sentado perto de nós, junto a uma espécie de casa que parecia ser um escritório, velho como tudo ali. Estávamos, os três, sentados no chão, no cimento cru de uma calçada e já tinham retirado nossas amarras e os melancólicos sacos pretos da nossas cabeças. — Testemunhas da história. — completou o motorista.
— Como assim? — Atrevi-me a perguntar, já esperando ser escolhido como primeiro a ser fuzilado.
— Vocês… seguiram a gente até aqui porque queriam ver a nave com seus próprios olhos. queriam acreditar.
— Bem, a gente não seguiu vocês até aqui, né?! Parte do roteiro foi a contra gosto… — Mas o Zé me interrompeu porque de repente eu estava agindo como se estivesse num filme ruim e ele precisava me deter.
— Claro que a gente sabe, claro que sim! O mantra do ferro-velho. A gente veio até vocês, até aqui, porque a gente quer precisa saber mais.
— Tenho três séculos de idade. Acreditem ou não… não tenho provas. — Falou não exatamente para ser ouvido.
— O galpão. A nave está no galpão.
No fundo do terreno, junto ao morro de rocha que desaparecia na luz vaga, erguia-se um galpão quase destroçado mas de pé ainda, sabe-se lá com que forças. Suas portas entreabertas revelavam uma escuridão no seu interior, exceto por luzes intermitentes e movimentos de lanternas. Heronides, era esse o seu nome, conduziu-nos até lá, até aquelas portas imaculadas que foram abertas para a nossa passagem. E lá estava o que não esperávamos… a Nave. Ninguém poderia apostar que aquele amontoado de peças voaria rumo ao espaço exterior, mas era essa a ideia. Olhávamos atentos e até reconhecíamos certos objetos em meio ao estranho projeto. Aqui e ali identificávamos enceradeiras ou ar-condicionados e janelas eram facilmente reconhecíveis pelos reflexos nos vidros.
A turma do ferro-velho sabia que o mundo havia sido invadido, assim como nós já desconfiávamos. Por sua vez, tomaram iniciativa e tinham seus próprios planos sobre o que fazer a respeito. Iriam embora. Partiriam logo, num próximo amanhecer. Heronides, por fim, nos tirou do estado de estatelamento e nos conduziu ao suposto escritório. Seu interior estava cheio de diagramas e mapas espalhados pelas paredes. Um velho globo com estrelas e linhas pintadas, reinando sobre uma mesa, era estudado com compassos e lupas por um grupo de… sabe-se lá! Engenheiros? Astrônomos? Mecânicos? Lunáticos?!
— É o navegador principal. Isso nos dará um rumo para seguir. — Disse Heronides.
— Como vocês sabem que não serão vistos e seguidos pelo sistema solar afora?
— Não sabemos. Não há garantias, meu amigo. Mas partiremos assim mesmo, arriscando tudo. Já estamos sendo seguidos nas nossas ruas, nas nossas vidas. Venham conosco… esse mundo aí fora do ferro-velho, já era.
O fato consumado é que eu e o Zé sabíamos que não poderíamos voltar, pois os invasores certamente já haviam cercado nossas casas. Nos engajamos nos trabalhos e apagamos nosso passado naquele velho galpão, aguardando a partida. Todos os dias, três ou quatro kombis saíam pela cidade em busca de peças, de equipamento, como dizem por aqui. Uma delas resgatou minha cadela, a Nina, e muitas vezes levaram cartas nossas para o mundo invadido. Cartas de despedida, recomendações e pistas falsas sobre o nosso paradeiro.
Outro dia um helicóptero sobrevoou o galpão. Duas vezes. Fomos às armas e esperamos pelo ataque que não aconteceu. Engraçado que construam naves, atravessem o universo e acabem voando nos nossos helicópteros. É muita vontade de colonizar um planeta. Brinquei com Heronides que deveríamos ir até o mundo deles e explodir tudo por lá. Ele riu, apontou para uma estrela qualquer no navegador e disse-me:
— Fica bem aqui… passaremos perto. O suficiente para sermos explodidos, e não explodi-los. Com sorte não seremos notados.
Era noite e as kombis chegavam. Nina corria pelo terreno e latia. Zé e os outros descarregaram as tralhas e vieram até nós:
— É o fim, não poderemos mais voltar à cidade. O aviso foi claro.
— Não vão nos confinar. É hora da partida, — Disse Heronides, que de repente pareceu mais alto e heroico.
O navegador foi cuidadosamente levado até a Nave para ser instalado. Olhamos lá para fora dos portões do ferro-velho uma última vez e os fechamos. Nunca mais os usaríamos novamente, só havia agora um único caminho para nós. Para cima, para o alto. Para nunca mais. E a Nina ia com a gente!
Para Zé José
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